Não houve estupro de vulnerável em caso de jovem de 20 anos, trabalhador rural e com pouca escolaridade, que se relacionou com uma adolescente de 12 anos, sobrevindo uma filha

O STJ, no julgamento do Tema 918 e na Súmula 593, fixou o entendimento de que o crime de

estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

A conduta de estupro de vulnerável imputada a um jovem de 20 anos, trabalhador rural e com pouca escolaridade, que se relacionou com uma adolescente de 12 anos, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal, embora formalmente típica, não constitui infração penal, tendo em vista o reconhecimento da ausência de culpabilidade por erro de proibição, bem como pelo fato de que se deve garantir proteção integral à criança que nasceu dessa relação.

STJ. 5a Turma. AgRg no AREsp 2.389.611-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12/3/2024 (Info 807).


PRATICAR SEXO COM MENOR DE 14 ANOS É CRIME

A Lei no 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Antes do art. 217-A, ou seja, antes da Lei no 12.015/2009, as condutas de praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos já eram consideradas crimes?
SIM. Tais condutas poderiam se enquadrar nos crimes previstos no art. 213 c/c art. 224, “a” (estupro com violência presumida por ser menor de 14 anos) ou art. 214 c/c art. 224, “a” (atentado violento ao pudor com violência presumida por ser menor de 14 anos), todos do Código Penal, com redação anterior à Lei n. 12.015/2009.

Desse modo, apesar de os arts. 213, 214 e 224 do CP terem sido revogados pela Lei no 12.015/2009, não houve abolitio criminis dessas condutas, ou seja, continua sendo crime praticar estupro ou ato libidinoso com menor de 14 anos. No entanto, essas condutas, agora, são punidas pelo art. 217-A do CP. O que houve, portanto, foi a continuidade normativa típica, que ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.

Antes da Lei no 12.015/2009, se o agente praticasse atentado violento ao pudor (ex: coito anal) com um adolescente de 13 anos, haveria crime mesmo que a vítima consentisse (concordasse) com o ato sexual? Haveria crime mesmo que a vítima já tivesse tido outras relações sexuais com outros parceiros anteriormente? Essa presunção de violência era absoluta?

SIM. A presunção de violência nos crimes contra os costumes cometidos contra menores de 14 anos, prevista na antiga redação do art. 224, alínea “a”, do CP (antes da Lei no 12.015/2009), possuía caráter absoluto, pois constituía critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual.
Assim, essa presunção absoluta não podia ser afastada (relativizada) mesmo que a vítima tivesse dado seu “consentimento” porque nesta idade este consentimento seria viciado (inválido). Logo, mesmo que a vítima tivesse experiência sexual anterior, mesmo que fosse namorado do autor do fato, ainda assim haveria o crime.

A presunção de violência era absoluta nos casos de estupro/atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos. Nesse sentido: STJ. 3a Seção. EREsp 1152864/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/02/2014.

E, atualmente, ou seja, após a Lei n. 12.015/2009?
Continua sendo crime praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso contra menor de 14 anos. Isso está expresso no art. 217-A do CP e não interessa se a vítima deu consentimento, se namorava o autor do fato etc. A discussão sobre presunção de violência perdeu sentido porque agora a lei incluiu a idade (menor de 14 anos) no próprio tipo penal. Manteve relação sexual com menor de 14 anos: estupro de vulnerável.
A Lei no 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

A fim de que não houvesse mais dúvidas sobre o tema, o STJ pacificou a questão editando a Súmula 593.

O Congresso Nacional decidiu incorporar na legislação esse entendimento e acrescentou o § 5o ao art. 217-A do CP repetindo, em parte, a conclusão da súmula e estendendo o mesmo raciocínio para outras espécies de pessoa vulnerável. Veja:

Art. 217-A. (…)
§ 5o As penas previstas no caput e nos §§ 1o, 3o e 4o deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Inserido pela Lei no 13.718/2018)

Em algumas localidades do país (ex: determinadas comunidades do interior), seria possível dizer que não há crime, considerando que é costume a prática de atos sexuais com crianças? É possível excluir o crime de estupro de vulnerável com base no princípio da adequação social?
NÃO. Segundo afirmou o Min. Rogério Schietti, a prática sexual envolvendo menores de 14 anos não pode ser considerada como algo dentro da “normalidade social”. Não é correto imaginar que o Direito Penal deva se adaptar a todos os inúmeros costumes de cada uma das microrregiões do país, sob pena de se criar um verdadeiro caos normativo, com reflexos danosos à ordem e à paz públicas.

Ademais, o afastamento do princípio da adequação social aos casos de estupro de vulnerável busca evitar a carga de subjetivismo que acabaria marcando a atuação do julgador nesses casos, com danos relevantes ao bem jurídico tutelado, que é o saudável crescimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes. Esse bem jurídico goza de proteção constitucional e legal, não estando sujeito a relativizações.

page33image857879632page33image857879936

Na sentença, durante a dosimetria, o juiz pode reduzir a pena-base do réu alegando que a vítima (menor de 14 anos) já tinha experiência sexual anterior ou argumentando que a vítima era homossexual? Claro que NÃO.

Em se tratando de crime sexual praticado contra menor de 14 anos, a experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido não servem para justificar a diminuição da pena-base a título de comportamento da vítima.
A experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido, assim como não desnaturam (descaracterizam) o crime sexual praticado contra menor de 14 anos, não servem também para justificar a diminuição da pena-base, a título de comportamento da vítima.

STJ. 6a Turma. REsp 897.734-PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015 (Info 555).

As conclusões acima expostas foram consolidadas pelo STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.480.881/PI (Tema 918) e na Súmula 593:

Súmula 593-STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

O que acontece se um garoto de 13 anos praticar sexo consensual com a sua namorada de 12 anos?

Haverá o que a doutrina denomina de estupro bilateral. Assim, ocorre o “estupro bilateral” quando dois menores de 14 anos praticam conjunção carnal ou outro ato libidinoso entre si. Em outras palavras, tanto o garoto como a garota, neste exemplo, serão autores e vítimas, ao mesmo tempo, de ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável.

Em que consiste a chamada “exceção de Romeu e Julieta”?

Trata-se de uma tese defensiva segundo a qual se o agente praticasse sexo consensual (conjunção carnal ou ato libidinoso) com uma pessoa menor de 14 anos, não deveria ser condenado se a diferença entre o agente e a vítima não fosse superior a 5 anos. Ex: Lucas, 18 anos e 1 dia, pratica sexo com sua namorada de 13 anos e 8 meses. Pela “exceção de Romeu e Julieta” Lucas não deveria ser condenado por estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

A teoria recebe esse nome por inspiração da peça de Willian Shakespeare na qual Julieta, com 13 anos, mantém relação sexual com Romeu. Assim, Romeu, em tese, teria praticado estupro de vulnerável.
A “exceção de Romeu e Julieta”, em regra, não é aceita pela jurisprudência, ou seja, mesmo que a diferença entre autor e vítima seja menor que 5 anos, mesmo que o sexo seja consensual e mesmo que eles sejam namorados, em regra, há crime.

EXPLICAÇÃO DO CASO JULGADO PELO STJ

Imagine a seguinte situação adaptada:

Em 2013, em uma pequena cidade do interior do Estado, João, trabalhador rural de 20 anos de idade, começou a namorar Maria, uma adolescente de 12 anos.
O relacionamento, em um primeiro momento, era aceito pela família da adolescente, mas logo depois passou a ser desaprovado pela mãe da garota.

Após um ano de namoro, Maria engravidou e deu à luz uma filha. O casal se separou logo em seguida, mas João continuou prestando à filha.
Os fatos chegam ao conhecimento do Ministério Público, que denunciou João por estupro de vulnerável.

Juiz absolveu o réu, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça

Em 1a instância, o juiz absolveu João argumentando que houve erro de proibição invencível. Isso porque, devido à pouca escolaridade e contexto social, João não tinha consciência de que seu ato era ilícito, acreditando estar em um relacionamento lícito. O fato de a família da adolescente ter conhecimento do relacionamento reforçou a percepção de João de que não haveria ilicitude em sua conduta.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença absolutória.

Recurso especial

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso especial argumentando que o acórdão do TJ contrariou o entendimento firmado pelo STJ no REsp 1.480.881/PI (Tema 918) e na Súmula 593 que define que a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente do consentimento da vítima.

O Parquet alegou, ainda, que o TJ não considerou adequadamente a vulnerabilidade da vítima, que tinha apenas 12 anos na época dos fatos.

Os argumentos do Ministério Público foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, sob o rito dos recursos repetitivos, no julgamento do REsp n. 1.480.881/PI, firmou entendimento no sentido de que, “para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime”. Tal orientação, inclusive, foi sedimentada por meio da edição do verbete n. 593/STJ.
No presente caso, o Tribunal de Justiça concluiu que “não se verificou, in casu, o conhecimento sobre a ilicitude da conduta”. E que “a pouca escolaridade do acusado e sua boa-fé de que estaria em um relacionamento lícito, aferida a partir da prova produzida em juízo, permitem a conclusão de que o apelante agiu em erro de proibição invencível”.
A presente hipótese não trata de atipicidade da conduta em virtude de eventual consentimento da vítima ou pelo fato de o réu “ser matuto”, nem de excludente de ilicitude por paixão. De igual sorte, não se está diante de erro de tipo, mas sim de excludente de culpabilidade, por erro de proibição invencível.
O caput do art. 227 da Constituição Federal, dispõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O legislador infraconstitucional estabeleceu que se considera “criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (caput do art. 227 da Constituição Federal). Ademais, “são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade” (art. 1o, § 1o, da Lei n. 12.852/2013).

Tem-se, portanto, norma constitucional que protege igualmente a criança nascida da relação tida entre a adolescente de 12 anos e o jovem de 20 anos, à época dos fatos.
Dessa forma, necessário realizar uma ponderação de princípios. O legislador ordinário, por meio da Lei no 13.257/2016, estabeleceu a necessidade de se atentar para a especificidade e a relevância dos primeiros anos de vida, denominada primeira infância, no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano. Assim, a prioridade absoluta, na hipótese, deve ser a proteção integral da criança que nasceu desta relação.

Ademais, deve se levar igualmente em consideração a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado, uma vez que se trata do relacionamento de dois jovens, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal.

Assim, cabe ao aplicador da lei, aferir se a conduta merece a mesma resposta penal dada, por exemplo, ao padrasto que se aproveita de sua enteada ou àquele que se utiliza de violência ou grave ameaça para manter conjunção carnal. É nesse ponto, inclusive, que reside o instituto da distinguishing ou distinção. A manutenção da pena privativa de liberdade acabaria por deixar a adolescente e a filha de ambos desamparadas não apenas materialmente, mas também emocionalmente, desestruturando entidade familiar constitucionalmente protegida. “Está em julgamento a vida de três pessoas que, mesmo chegando a este Tribunal disfarçadas de autos processuais, são as mais diretamente interessadas na resolução do conflito decorrente do crime”. (AREsp 1555030/GO e REsp 1524494/RN, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 18/5/2021).

Se por um lado a Constituição Federal consagra a proteção da criança e do adolescente quanto à sua dignidade e respeito (art. 227), não fez diferente quando também estabeleceu que a família é a base da sociedade, e que deve ter a proteção do Estado, reconhecendo a união estável como entidade familiar (art. 226, §3°). Antes, ainda proclamou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (1o, III) e o caminho da sociedade livre, justa e fraterna como objetivo central da República (preâmbulo e art. 3o, III).

A censura penal no novo vínculo familiar (que existiu e que ainda permanece – pai e filha; mãe e filha – onze anos depois – 2013/2024), é mais prejudicial do que se pensa sobre a relevância do relacionamento e da relação sexual prematura entre a vítima e o acusado, haja vista o nascimento da filha do casal.

Em suma:

A conduta de estupro de vulnerável imputada a um jovem de 20 anos, trabalhador rural e com pouca

escolaridade, que se relacionou com uma adolescente de 12 anos, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal, embora formalmente típica, não constitui infração penal, tendo em vista o reconhecimento da ausência de culpabilidade por erro de proibição, bem como pelo fato de que se deve garantir proteção integral à criança que nasceu dessa relação.

STJ. 5a Turma. AgRg no AREsp 2.389.611-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12/3/2024 (Info 807).

Se quiser aprofundar, veja os principais trechos da ementa:

(…) 2. Reafirmação pela Relatoria da defesa intransigente dos direitos da criança e da adolescente, no sentido de que a menor de 14 anos deve, na verdade, estudar, brincar e participar de atividades próprias para sua idade. Não deve namorar, pois está ainda em formação biológica e emocionalmente. De igual

sorte, deve-se ratificar incansavelmente a principiologia trazida na jurisprudência firmada pela Terceira Seção desta Corte Superior sobre a matéria e sedimentada por meio do enunciado n. 593/STJ.
– No entanto, não se deve deixar de levar em consideração que a vida é maior que o direito. Logo, a indesejável antecipação da adolescência ou mesmo da fase adulta não pode acarretar um prejuízo maior para aqueles que estão envolvidos, em especial para a criança que adveio do relacionamento do casal (que durou mais ou menos 1 ano – e-STJ fl. 199 ) e é a prioridade absoluta do sistema brasileiro, por meio do estatuto da primeira infância.

– Descendo aos fatos, registro que, embora o casal não esteja mais junto, consta que o pai continua dando assistência à criança.
Ademais, o Tribunal de origem destacou se tratar de um trabalhador rural, com 20 anos de idade à época dos fatos, que incidiu em erro de proibição invencível. Nesse contexto, está-se diante de situação excepcionalíssima, na qual se deve priorizar a nova vida, em atenção ao estatuto da primeira infância, que, como já afirmado, tem prioridade absoluta.

(…)
5. Ainda que se considere que o enunciado n. 593/STJ reflete, em verdade, o art. 227 da CF, não se pode descurar que o caput do mencionado dispositivo, com redação dada pela EC 65/2010, dispõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
– Mais uma vez, dando às coisas o nome que elas têm, registro que o legislador infraconstitucional estabeleceu que se considera “criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2o da Lei n. 8.069/1990). Ademais, “são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade” (art. 1o, § 1o, da Lei n. 12.852/2013). Tem-se, portanto, norma constitucional que protege igualmente a criança nascida da relação tida entre a adolescente de 12 anos e o jovem de 20 anos, à época dos fatos.
– Dessa forma, necessário, de fato, realizar uma ponderação de princípios, mas não no formato em que sugerido. Com efeito, o legislador ordinário, por meio da Lei n. 13.257/2016, estabeleceu a necessidade de se atentar para a especificidade e a relevância dos primeiros anos de vida, denominada primeira infância, no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano. Assim , a prioridade absoluta, na hipótese, deve ser a proteção integral da criança que nasceu desta relação.
6. Um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de culpabilidade, em virtude do reconhecimento do erro de proibição. Ademais, deve se levar igualmente em consideração a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado, uma vez que se trata do relacionamento de dois jovens, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal.
– Não se está a infirmar a orientação sedimentada no enunciado sumular n. 593/STJ. Com efeito, não obstante a necessidade de uniformização da jurisprudência pátria, por meio da fixação de teses em recursos repetitivos, em incidentes de assunção de competência bem como por meio da edição de súmulas, não se pode descurar do caso concreto, com as suas particularidades próprias, sob pena de a almejada uniformização acarretar injustiças irreparáveis.
– Da mesma forma que o legislador não consegue prever todas as variáveis possíveis da conduta incriminada, igualmente as teses firmadas em repetitivos nem sempre albergam as peculiaridades do caso concreto. Assim, cabe ao aplicador da lei, aferir se a conduta merece a mesma resposta penal dada, por exemplo, ao padrasto que se aproveita de sua enteada ou àquele que se utiliza de violência ou grave ameaça para manter conjunção carnal. É nesse ponto, inclusive, que reside o instituto da distinguishing ou distinção.

7. A condenação de um jovem de 20 anos, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de uma pena de mais de 11 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana. Dessa forma, estando a aplicação literal da lei na contramão da justiça, imperativa a prevalência do que é justo, utilizando-se as outras técnicas e formas legítimas de interpretação (hermenêutica constitucional).

– O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, já deixou de aplicar um tipo penal ao caso concreto, nos denominados hard cases, se valendo da teoria da derrotabilidade do enunciado normativo, a qual trata da possibilidade de se afastar a aplicação de uma norma, de forma excepcional e pontual, em hipóteses de relevância do caso concreto. (…)

-Doutrina sobre a Teoria da derrotabilidade do enunciado normativo no Direito Penal.
8. Não se mostra coerente impor à vítima uma vitimização secundária pelo aparato estatal sancionador, ao deixar de considerar “seus anseios e sua dignidade enquanto pessoa humana”. A manutenção da pena privativa de liberdade do recorrido acabaria por deixar a adolescente e a filha de ambos desamparadas não apenas materialmente mas também emocionalmente, desestruturando entidade familiar constitucionalmente protegida. (…)
(AgRg no AREsp n. 2.389.611/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 12/3/2024, DJe de 10/4/2024.)

Fonte: Dizer o Direito

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *